MARIA, A MULHER QUE NÃO SABIA, MAS ACREDITAVA


Temos assistido a uma “assunção” de Maria no campo da espiritualidade católica. Em alguns meios, de fato, ela “passou a frente”. O livro “Tratado da Verdadeira Devoção à Virgem Maria” de São João de Montfort tem sido reeditado, devido a grande procura. Crescem o número de “consagrados” segundo o método proposto por esse livro. Resta saber se a forma da atual devoção à Maria está em acordo com a Grande Tradição, o deposito da fé apostólica.
O que chama a atenção na espiritualidade de muitos católicos hoje é que a figura de Maria é admirada não apenas pela sua pureza, obediência e simplicidade, mas por ser uma predestinada, e por ser apontada como um caminho mais adequado para a união com Deus, o que já é um exagero. Uma crença, portanto construída sobre textos romanceados e pretensas revelações.
A diferença entre Maria e Deus será sempre infinita: será sempre a distância entre a criatura e o Criador. Maria, como descrita na Bíblia, é uma criatura que está limitada ao tempo e ao espaço, tem um conhecimento limitado e era passível de pecado.
No campo da reflexão teológica católica, Maria é apontada como a nova Eva. O que significa que as duas não tinham a tendência ao pecado, todavia tinham liberdade para pecar, se fosse o caso. O dogma da Imaculada Conceição deve ser entendido à luz de outro dogma, o do pecado original. Explico melhor: quando Deus criou o primeiro homem e a primeira mulher, estes podiam escolher livremente entre a fidelidade e a desobediência. Mas depois do primeiro pecado toda a humanidade ficou com uma tendência ao pecado, tendo uma dificuldade maior em rejeitá-lo. Em Maria, esta cadeia teria sido quebrada por uma interferência divina. Mas isso não significa que Maria não poderia pecar, mas sim que ela não tinha a tendência ao pecado, cabendo a mesma por um ato de livre vontade ser fiel ou não a Deus. É o que afirma Lumen Gentium “Maria não foi instrumento meramente passivo nas mãos de Deus, mas cooperou na salvação dos homens com fé livre e com inteira obediência” (n. 56).
Na devoção a Maria predominante destaca-se seu aspecto divinizado, imaculado. Mas em contraponto, as sagradas escrituras destacam seu aspecto de criatura, sua humanidade, sua expectativa terrena de uma nova ordem social, e não obstante sua “confusão” diante de uma missão inédita, seu abandono na providência de Deus.
O primeiro traço que podemos destacar da humanidade de Maria é que ela estava desposada com José. (Mt 1,18). Não havia nela uma presciência de que seria mãe de Jesus. Por isso, diante do anjo  pergunta: “Como se fará isso, pois não conheço homem? (Lc 1,34). Diante do advento da salvação, Maria não tem em vista apenas uma salvação espiritual, celestial. Ela entende sobre o aspecto revolucionário da vinda do Messias, o advento de uma nova ordem social, como canta no seu Magnificat: "Manifestou o poder do seu braço: desconcertou os corações dos soberbos. Derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes. Saciou de bens os indigentes e despediu de mãos vazias os ricos." (Lc 1,51-53).
Ainda sobre o seu aspecto humano diante dos eventos que se passaram no nascimento de Jesus, Lucas nos diz que "Todos os que os ouviam admiravam-se das coisas que lhes contavam os pastores. Maria conservava todas estas palavras, meditando-as no seu coração." (Lc 2,18-19). Também quando o garoto Jesus desencontrou-se, quando retornavam de Jerusalém, Maria admirou-se e afligiu-se: "Quando eles o viram, ficaram admirados. E sua mãe disse-lhe: Meu filho, que nos fizeste?! Eis que teu pai e eu andávamos à tua procura, cheios de aflição. Respondeu-lhes ele: Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai? Eles, porém, não compreenderam o que ele lhes dissera. (Lc 2,48-50).
Assim podemos ver que Maria teve conflitos, teve momentos de provação. Podemos seguir Jesus Cristo não porque ele era um ser divino, mas porque ele assumiu nossa humanidade, fazendo-se igual em nós em tudo, com exceção do pecado. Ele experimentou as angústias humanas, foi tentado. Se sabemos disso em relação à Jesus, não podemos imaginar Maria como alguém isenta dos conflitos humanos. E por isso mesmo é que ela também se torna um modelo de cristã, por que viveu a fé a partir da experiência humana, a experiência de cada um de nós: de certezas e incertezas, de conflitos e de esperança.
É óbvil que Maria tem um lugar de destaque na história da Salvação. Todavia nos surpreenderemos a chegar no céu e não encontrar Maria como rainha, mas sim como um membro do povo de Deus. O Catecismo aponta que, não obstante seu papel maternal (Jo 19,26-27), o lugar de Maria é no seio do povo de Deus.
Maria é um personagem importantíssimo na história da Salvação. Ainda assim não devemos dar a ela o lugar que não lhe pertence. Pois na Bíblia ela mesma reconhece que a obra feita nela é fruto da mão do Poderoso e da misericórdia de Deus (Lc 1,48-49)! Somos cristãos, nossa fé provém de Cristo e de sua revelação, Maria é parte e não o todo da revelação, de modo que possamos livremente, cultuar Cristo ou a Maria a nossa escolha, com a mesma intensidade, pretendendo obter os mesmos frutos. Jesus é o centro da fé católica, somente ele é mediador entre Deus e os homens (1Tm 2,5), somente ele é caminho verdade e vida, que leva ao Pai (Jo 14,6).


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