Interculturalidade e extracanonicidade da Revelação hebraico-cristã



As pesquisas recentes em história de Israel revelam que o povo hebreu era na verdade cananeu, mas que mais tarde se entendeu como povo de Israel (norte) ou então como Judá (sul). A religião pré-exílica ao que tudo indica era politeísta, icônica, possuindo diversos lugares de culto.

No Antigo Testamento parece haver a referência a duas divindades principais: El, tomado do panteão canaanita, e Yahweh, deus das tribos árabes da região de Edom. Ou seja as duas divindades dos hebreus (que depois foram fundidas em uma só), foram adotadas de outros povos.

O processo de escrita dos textos sagrados pela mão sacerdotal na fundação do segundo templo retoma diversas tradições do caldo cultural do oriente próximo adaptando-as à sua tradição religiosa. Para citar exemplos, podemos mencionar o relato da criação do Gênesis que é uma paródia do Enuma Elish babilônico, a narrativa do dilúvio que reedita a mesopotâmica Epopeia de Gilgamesh, o relato sobre os filhos dos deuses e a crença em titãs, o nascimento de Moisés muito próxima a lenda do rei Sargão, as tábuas da lei e o código de Hamurabi...

A religião preexílica concebia Yahweh como um Deus soberano, capaz do bem e do mal, que assumia uma forma humana para visitar a terra (anjo de Yahweh). Não havia um apelo ético, não havia noção de recompensa após a morte, mas ao morrer todos iriam habitar nos abismos (sheol).

A libertação do cativeiro babilônico por obra de Ciro II, rei da Pérsia, fez este ser reconhecido como Messias dos judeus exilados (um rei pagão)! E é provável que grande parte das crenças que se estabeleceram no judaísmo pós exílico tem origem no Zoroastrismo, a religião persa.

Ela concebia a existência de um único deus criador da ordem (Ahura-Mazda), e em oposição a este um ser capaz de provocar a desordem do mundo (Angra Mainyush). Há uma luta entre estes dois princípios e cada pessoa deve tomar parte nesta luta buscando praticar o bem. No fim, por intervenção de um enviado, o deus bom vencerá o mal, ressuscitará todos os mortos, premiará aqueles que agiram conforme os princípios do bem, estabelecerá o paraíso, e castigará os maus lançando-os no abismo. Se vê claramente que estes elementos foram absorvidos pelo judaísmo, que no estabelecimento da religião do segundo templo passa a ser uma religião de cunho ético, monolátrico e iconoclasta. Além desses itens é uma crença persa a ação de anjos e demônios no mundo humano.

A literatura sapiencial estabelece a categoria do logos como hipóstase divina em diálogo com a cultura grega. Estudos recentes também demonstram que o Novo Testamento é profundamente influenciado pela literatura apócrifa, que se produziu no período grego, sobretudo as tradições apocalípticas. Como exemplo podemos citar a crença em maus espíritos, que segunda aquela literatura seriam descendentes de relacionamentos entre nefilins e humanos.

Um caso particular de inculturação das crenças extrabíblicas é o relato joanino sobre a piscina de Betesda, onde se relata que um anjo agitava as águas que tornavam-se curativas. Pesquisas arqueológicas revelaram que este lugar era um local de culto do deus Asclépio, deus da medicina na mitologia greco-romana.

Isto só para citar o período bíblico, porque se adentrarmos na história cristã podemos ver tantos outros elementos da cultura que foram incorporados, mesclados ou absorvidos pela religião oficial. Mais recentemente vemos a cultura gospel incorporando ritmos musicais, elementos da cultura contemporânea e lhes dando o seu traço particular.

Como podemos perceber, longe de ser um processo puro, se quisermos com boa vontade manter a categoria de revelação para o processo de construção das crenças bíblicas, há que se levar em conta o caráter da interculturalidade. Grande parte destas crenças se construíram no diálogo com outras culturas, cultos e textos religiosos dos povos circundantes aos hebreus. Nada mais contraditório do que fazer da religião cristã uma redoma. Daí a necessidade de se levar o caráter da interculturalidade para perceber que na verdade, salvaguardando-se a categoria de revelação, "Deus" se há revelado no diálogo entre as várias expressões da cultura humana.


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