A transfiguração no Tabor: uma leitura para uma necessária conexão entre a vida terrena de Jesus e seu mistério pascal


O Novo Testamento apresenta o caminho inverso da constituição da fé sobre Jesus: a chamada "cristologia do alto", que resumidamente pode ser dita assim: Jesus, de natureza divina, existia desde sempre junto de Deus, mas veio ao mundo para morrer e ressuscitar e assim introduzir o humano na vida divina (Jo 3,16). A formulação predominante apresenta um Jesus que nasceu para morrer. No Credo (resumo doutrinal católico) após os dizeres: “nasceu da virgem Maria”, vem em seguida os termos “padeceu sob Pôncio Pilatos”, após a menção do nascimento segue-se imediatamente a alusão à sua morte. Segundo o teólogo alemão Meinrad Limbeck(1) toda a cristologia paulina foi construída essencialmente sobre os três últimos dias de Jesus. O risco que se corre é não levar em conta a vida concreta de Jesus, e ignorarmos o processo de constituição da fé cristológica em sua ordem natural.
“Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com poder; o qual andou fazendo o bem, e curando a todos os oprimidos do diabo, porque Deus era com ele. E nós somos testemunhas de todas as coisas que fez, tanto na terra da Judéia, como em Jerusalém; ao qual mataram, pendurando-o num madeiro.” (Atos 10,38-39). Esse trecho que é uma variação do querigma(2) originário não deixa de contemplar a vida terrena de Jesus: “ele andou fazendo o bem”; "somos testemunhas de tudo aquilo que ele fez".  Vale frisar que ele passa ao largo da origem divina de Jesus, dedução feita apenas posteriormente na história do Cristianismo. Este crescimento na compreensão da pessoa de Jesus pode ser melhor vista por meio de um estudo da sequência histórica dos escritos do novo testamento.
Até o início de sua missão pública, Jesus era alguém desconhecido. Será que ao menos dentro do seu círculo familiar haviam expectativas sobre sua pessoa? São questões as quais só temos os textos bíblicos de Lucas e Mateus para consultar a esse respeito, onde Jesus aparece como um ser predestinado. Já Marcos apresenta uma cena particularmente interessante. Se tornar um Messias era algo perigoso, os conterrâneos de Jesus acham que ele está louco, e os irmãos e a mãe de Jesus o procuram provavelmente para dissuadí-lo da pretensão messiânica (Mc 3,21.32).
Tanto o querigma apostólico, como o evangelho de Marcos começam a falar de Jesus somente a partir de seu aparecimento público, a partir de sua participação no movimento de João Batista e do início de suas pregações e curas. A atividade pública de Jesus assemelha-se a de um rabi itinerante, com um séquito de discípulos, alguns mais próximos, e alguns mais distantes, que eventualmente lhe escutavam e paravam para ver o espetáculo de curas. Jesus é chamado Rabi (Mestre) 45 vezes nos evangelhos, e essa seria a compreensão mais adequada para descrever sua identidade histórica. Se Jesus era um mestre, era porque ensinava, mas qual era exatamente o teor de sua doutrina?
Jesus e Sócrates (4) tem em comum o fato de não terem deixado escritos autorais. Então o que conhecemos a respeito deles vem de terceiros. No caso de Jesus, sabemos pelos evangelistas, no caso de Sócrates, pelos escritos de Platão. Só através dos evangelistas podemos conhecer as linhas gerais da atividade de Jesus, Segundo eles, o ministério público de Jesus consistia em pregar e curar. Cabe destacar os temas principais da pregação de Jesus: a caridade, ou seja a benevolência, o perdão; a condenação da ambição material, a condenação da hipocrisia religiosa, sua identidade, seu destino...
Acerca do desfecho da vida terrena de Jesus, sua morte mediante tortura e crucificação, se sabe que tem premissas históricas, e foi revestida de um significado teológico, a partir da releitura das profecias veterotestamentárias sobre o Messias. O fenômeno messiânico teve várias edições no período da dominação romana sobre a região da Judeia. A própria Bíblia faz menção a outros líderes messiânicos, como Teudas e um Judas (não o Iscariotes) (5). A polícia romana tratava de sufocar insurgências, crucificando os líderes revolucionários.
Segundo o argumento de Gamaliel (5), os movimentos liderados por outros messias geraram uma certa repercussão, todavia se dissolveram. Mas o de Jesus prosperou. A novidade que conferiu o prosseguimento ao movimento cristão foi a ideia de que seu líder havia ressuscitado dentre os mortos. Sobre a facticidade histórica da ressurreição de Jesus, a ciência nada pode afirmar, todavia não se pode ignorar o surgimento histórico da ideia da ressurreição. Cabe a teologia, por sua vez refletir sobre o significado dos fatos teológicos. A partir de então vale refletir sobre o significado teológico da morte-ressurreição de Jesus.
A principal vertente hermenêutica é a da morte sacrifical de Jesus pela remissão dos pecados da humanidade, baseado principalmente na profecia de Isaias sobre o servo sofredor (Is 53). Aqui apresentaremos uma face interpretativa alternativa que apresenta a ressurreição como uma testificação divina acerca da mensagem de Jesus, a partir do relato da transfiguração de Jesus no monte Tabor, que não nega a corrente principal, mas tem efeito de complementação.
A transfiguração é um relato presente nos evangelhos sinóticos (Mateus 17:1-9, Marcos 9:2-8 e Lucas 9:28-36) no qual Jesus sofre uma transformação, ficando radiante de luz. Quando Jesus e os três apóstolos estavam descendo da montanha, Jesus pediu-lhes que não contassem para ninguém sobre "esta visão" até que o "Filho do homem" tivesse "ressuscitado dos mortos". Assim se evidencia a conexão entre o fenômeno da transfiguração e a ressurreição.
A luz radiosa significa a glória de Deus que assim foi conferida a Jesus, glória que viria a se manifestar definitivamente na própria ressurreição. O significado desse evento é dada pela manifestação da voz de Deus que afirmou:  “Este é o meu filho amado, ouvi-o”. Deus reconhece a inspiração do ensinamento e da prática de Jesus (para alguns vista como subversivo). Este reconhecimento do Tabor é uma prefiguração da ressurreição, ao passo que a ressurreição é o atestado absoluto do reconhecimento divino de toda a obra de Jesus: aquilo que ensinou e afirmou ele mesmo ser.
O significado da Páscoa de Cristo como um evento salvífico é predominante na reflexão cristã. Aqui apresentou-se que a ressurreição de Cristo é também vista como um atestado divino acerca do ensinamento de Jesus. Crer em Jesus Ressuscitado não é apenas sentir-se perdoado e destinatário do céu, é também levar a sério tudo o que ele fez e ensinou como exemplo a ser seguido: o cuidado e o resgate dos fracos e excluídos, o amor aos inimigos, a não-violência, a sinceridade e a confiança em Deus, o desapego às riquezas e a entrega pelo bem do próximo. O Reino pregado por Jesus, e testificado por Deus, é assim visto como uma nova ordem social e religiosa, uma nova configuração da maneira de nos portarmos diante de Deus, do mundo e dos outros.

(1) LIMBECK, Meinrad. Adeus À Morte Sacrificial - Repensando o Cristianismo. Vozes, Petrópolis,2017.
(2) Palavra grega que significa anúncio, é aplicada à primeira formulação pregada pelos apóstolos nos primórdios da pregação cristã.
(3) A teoria das fontes afirma que Marcos é a fonte originária dos evangelhos de Mateus e Lucas.
(4) filósofo grego
(5) Porque antes destes dias levantou-se Teudas, dizendo ser alguém; a este se ajuntou o número de uns quatrocentos homens; o qual foi morto, e todos os que lhe deram ouvidos foram dispersos e reduzidos a nada. Depois deste levantou-se Judas, o galileu, nos dias do alistamento, e levou muito povo após si; mas também este pereceu, e todos os que lhe deram ouvidos foram dispersos. (At 5,36-37)

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